Facundo Guerra
3 min readJan 12, 2021

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Futuro do pretérito

Começo do ano é hora de pagar de Nostradamus, tentar revirar as entranhas de bodes para auscultar o futuro e nos prepararmos para ele. Estamos constantemente presos na ideia de passado ou nos futuros possíveis. O futuro nos causa ansiedade, o passado, nostalgia e muitas vezes, depressão.

É difícil conceber que o futuro ou o passado não existem. O passado é um simulacro, uma versão do que aconteceu segundo a ótica daqueles que venceram (Churchill costumava dizer: “A história será gentil comigo, pois eu pretendo escrevê-la”), enquanto que o futuro, bem, o futuro é parido e operado no presente. Nenhum futuro existe: existem, sim, futuros possíveis, e a ficção científica especulativa se dedica a observar os acontecimentos no presente e prolongá-los para futuros prováveis.

Consumo é cultura e reflexo do comportamento e interações sociais entre nós, humanos. Impossível descolar nos dias de hoje o consumo dos impactos culturais que foram gerados pela Covid, talvez o evento histórico que fundará o século XXI. Uma das grandes perguntas que todos nós que trabalhamos no comércio nos fazemos: como a peste influenciará o varejo? Deixarão de existir as lojas? Tudo será online?

Antes de mais nada, é hora de deixar online e offline em categorias distintas. Isso é coisa de tiozão que teve sua adolescência nos anos 1990. O mundo é modulado por instâncias que são digitais e físicas simultaneamente: você pode estar com seu celular trancado em um cofre, mas isso não quer dizer que sua vida digital cessará. Você seguirá recebendo emails, likes, comentários, mensagens de toda sorte. Ao mesmo tempo, ainda que você esteja online, seus sentidos estão parcialmente operantes. Ninguém precisa de fralda quando está absorto em sua timeline do instagram. Seu corpo é a frente de uma batalha, este sim se é ininterruptamente objeto de disputa por atenção em múltiplas frentes.

Mas qual o impacto de 2020 no varejo, diretamente? Minha aposta: lojas que vendem apenas produtos irão sofrer muito. A loja precisa passar a ser um espaço de venda de experiência que transcenda o produto. Ninguém compra produtos: as pessoas compram soluções para seus problemas íntimos, ou compram objetos que as ajudem a se expressar, ou que completam algo que lhes falta em sua identidade, ou compra maneiras de se diferenciar socialmente.

Um produto é uma commodity. Todo produto emite sinais, e são esses sinais que interessam ao consumidor (o que escrevo aqui é válido para o varejo, e não pode ser facilmente transplantado para o comércio entre empresas). Logo, a loja precisa ser muito menos sobre o produto e muito mais sobre quem poderia se interessar pelo produto: a coisa em si, mas tudo que também está em suas adjacências. Talvez a compra não se dê ali, ou se dê através de um site na própria loja. A loja, mais além de quanto vende, precisa também ser interpretada como uma peça fundamental de construção da marca.

Por outro lado, o site cada vez mais se aproximará de uma loja física. Você pode não ter notado enquanto faz compras online, mas a experiência está mudando radicalmente de uns meses para cá: clicar em uma barra de navegação de um site para encontrar um item tornou-se contraproducente (uma barra de pesquisa que permite que você procure um produto específico é muito mais rápida e efetiva). Em alguns casos, conversar com um bot pode ser ainda mais eficiente e nos aproxima da experiência de termos uma relação com um vendedor. Varejistas como a Amazon têm usado chatbots para responder às perguntas dos clientes e, quando os bots não podem ajudar, uma pessoa pode entrar para assumir a relação. A noção de ficar online e pesquisar e clicar e usar uma janela de navegação é muito datada. As transações online serão muito mais fluidas, coloquiais, farão parte de uma conversa, exatamente como aconteceria em uma loja física.

Minha aposta pro varejo pós-covid? Não importará o meio em que a compra de seu produto acontecerá. A experiência do seu consumidor, preocupado com a sua jornada e cheio de dores e cicatrizes, deverá ser a mais fluida possível, independente da mídia onde ele estiver. Quem sabe não está na hora de deixarmos de ver o online como uma categoria de mundo à parte?

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Facundo Guerra

Engenheiro de alimentos, jornalista internacional e político, mestre e doutor em Ciência Política pela PUC-SP, diagnosticado empreendedor aos 30 anos de idade.