Facundo Guerra
3 min readMay 8, 2021

Lutar pela sobrevivência não é empreender

Eu tenho me debatido muito sobre o que é empreendedorismo nos dias de hoje. Acho que essa é uma questão urgente e pouco discutida. Qual a diferença, por exemplo, entre um empreendedor e um empresário, ou um administrador de empresas? Acredito que empreendedor e empresário são quase personagens diferentes dentro do mundo dos negócios. Eu, por exemplo, acredito que sou bom no papel de empreendedor, mas como empresário, errr, nem tanto. Dificilmente você encontra a mesma pessoa fazendo bem as duas coisas.⁠

⁠O mundo não precisa de mais uma pessoa que se julga empreendedora sem nunca ter criado nada além de uma apresentação no keynote e um plano de negócios, um livro de autoajuda ou palestras motivacionais. ⁠Tampouco precisa de mais uma startup que só faz sentido em um powerpoint, que para fazer dinheiro precisa de tal alinhamento de astros que antes de se tornar lucrativa veremos o dia do juízo final. E, no entanto, não faltam empresas cujos criadores mais se parecem com pastores neopentecostais do que com empreendedores, pedindo atos de fé extremo em seus empreendimentos.

⁠Empreendedor não é profissão, é apenas um estado. Enquanto você estiver abrindo seu caminho a picadas, no risco, lidando com poucos recursos e andando no fio da navalha, você será empreendedor. Depois da colônia assentada, será um empresário, um sedentário, pelo menos até se aventurar por novos territórios. ⁠O que não é pouco: sem uma sensata gestão, nenhuma boa ideia para em pé. Não implico aqui que ser empreendedor é de qualquer maneira mais nobre do que um administrador de empresas ou empresário. Mas, ao menos para mim, a figura do empreendedor se transmuta em empresário quando o negócio está montado.

Se já existe essa confusão entre empreendedor e empresário, poucas coisas neste planeta são mais irritantes — e mais sádicas — do que a imprensa e os vendedores de autoajuda transformarem a luta pela sobrevivência em empreendedorismo. É difícil definir o que é empreendedorismo, mas é relativamente fácil definir o que não é: empreendedorismo não é um desempregado vendendo balinhas em semáforo. Não é uma pessoa com dificuldade de locomoção entregando comida por aplicativos, nem senhoras de 90 anos distribuindo CVs por desespero, nem crianças trabalhando em plantações de cana de açúcar para ter algo o que comer no final do dia.

⁠Estas não são belas histórias de superação e resiliência: são lutas desesperadas pela sobrevivência, e não podem ser edulcoradas pela lente rosada do empreendedorismo como um exemplo a ser seguido pela classe média preguiçosa.⁠ Não se deveria confundir desespero por heroísmo. Tais notícias deveriam nos inflamar de indignação, por estarem longe de serem lições de empoderamento ou superação: são, na verdade, exemplos extremos de desigualdade social e a falência de um Estado que deixa à mercê do mercado os mais frágeis.⁠ Não entenda que faço de menos o trabalho desses humanos: todo o trabalho honesto é digno, já dizia meu avô. Mas chamar 50% dos brasileiros desempregados ou em situação informal de empreendedores é usar uma palavra bonita e muito em voga para disfarçar a tragédia que significa milhões de pessoas desesperadas para arrancar do mundo um prato de comida para a sua família no final do dia.

Empreendedorismo envolve muito planejamento e se trata de uma escolha em algum nível. Luta desesperada pela sobrevivência é só isso: uma luta.⁠

Facundo Guerra

Engenheiro de alimentos, jornalista internacional e político, mestre e doutor em Ciência Política pela PUC-SP, diagnosticado empreendedor aos 30 anos de idade.