Facundo Guerra
3 min readMar 21, 2022

NFT (não me f* tanto)

Não faz um ano que eu estava escrevendo meu segundo livro, “Destruir para Criar”, e tive de interrompê-lo porque começaram a pipocar, primeiro nas newsletters (uma ótima fonte para você se atualizar sobre o que está acontecendo no mundo), depois na mídia especializada em tecnologia, um novo (produto? conceito? difícil de categorizar) meio de garantir que ativos digitais eram originais (aqui caberia toda uma tese de doutorado: o que é original quando falamos de algo que é reproduzível ao infinito?) e que portanto poderiam ser valorizados através da escassez como suas contrapartes físicas.

O ativo digital, batizado de maneira um tanto críptica como NFT (non-fungible token), é um código que permite músicas, filmes, documentos, memes, documentos compostos por códigos de uma maneira geral, de serem verificados como originais dentro de uma cadeia de blockchain. Não vão me estender sobre o assunto, se você não ouviu falar de NFT no último ano, deve estar saindo agora de uma clínica psiquiátrica (se bem que um mundo que cria os NFTs deveria ter o mesmo status, convenhamos).

Em menos de um ano, a cultura, e tudo que se refere a empreendedorismo, esse campo tão amorfo, foi tomado de assalto por novas palavrinhas: NFT, metaverso, web3, uma segunda onda de cripto, avatares, DAOs, e todo um campo correlato).

Estamos vibrando numa frequência tão alta que mal temos tempo de nos questionar que raios todas essas palavras representam. Elas têm valor? Significam algo? Facilitam nossa vida? Resolvem algum problema real? Reduzem a desigualdade? Algo disso tudo faz sentido? De repente fomos tomados de assalto por centenas de reportagens, posts e apóstolos apressados em dizer que haviam visto o amanhã, que tinham descoberto terras nunca dantes vistas, que a verdade é entubada em nós, como se fosse um fato dado.

Eis o mal de estarmos sempre tão estimulados: não temos tempo para refletir. Eu me encontro nesse grupo, certamente, mas tenho uma vantagem que os anos me trouxeram: sou um cético. Cheguei na internet quando era tudo mato. Trabalhei com as maiores precursoras dessa então terra nova no começo dos anos 2000, escrevi minha tese de mestrado e doutorado sobre ela ainda antes de 2010, tenho uma certa familiaridade com sua estrutura e, melhor do que tudo, vi onde falhou, de sua gênese militar, ao discurso utópico à distopia materializada, das novas fortunas e nova economia às esquemas de ponzi e as bolhas que estouraram, acompanhei tudo de perto.

Face a tudo isso, outro dia fiz um post no meu instagram sobre as semelhanças entre NFT e esquemas de ponzi, questionando a validade desses ativos como alicerces para “a nova internet”, a web3, depois de ter visto um documentário no YouTube incrível, (“Line Goes Up — The Problem With NFTs​​”, super recomendado). Nada mais fiz do que condensar alguns dos pontos abordados por este doc em um post bobo no instagram. Fui vilipendiado, açoitado em praça pública, arrastado na lama por haters, o resultado foi hilário. Recebi uma chuva de hate que não esperaria nem que afirmasse publicamente acreditar que a terra era redonda e que a vacina contra a covid causava paralisia cerebral.

O que me dei conta? NFT, e os seus fervorosos defensores, geralmente homens brancos tecno-fetichistas entre 20 e 30 e poucos anos, representam uma segunda oportunidade para pessoas que cresceram com os pais e viram seus sonhos de se tornarem o próximo Elon Musk destruídos pela calcificação do mercado e monopolização das oportunidades pelas grandes empresas de tecnologia. São pós-adolescentes ressentidos, e enxergam nas cripto e NFTs uma oportunidade de “destruir o sistema” e “vencer na vida” sem muito esforço, comprando um gif de macaquinho e acreditando que o futuro os deixará milionários porque foram “visionários”. Infelizmente não conseguem ver que o cassino é viciado e que eles são os tokens que farão os ultra ricos, a “casa”, ganhar mais uma vez. Porque se as semelhanças entre as cripto e NFTs com os cassinos são muitas, vale a pena lembrar: a casa sempre ganha.

Facundo Guerra

Engenheiro de alimentos, jornalista internacional e político, mestre e doutor em Ciência Política pela PUC-SP, diagnosticado empreendedor aos 30 anos de idade.