Nunca fomos normais

Facundo Guerra
2 min readAug 18, 2021

--

No momento em que escrevo estas linhas o Brasil parece que começa a deixar para trás o pior da pandemia: bares e restaurantes já não têm mais limitações em seu funcionamento, “você já se vacinou?” é uma frase que usamos na abertura das nossas conversas, as reuniões presenciais são cada vez menos estranhas e o trânsito paralisa o fluxo novamente nas grandes cidades. Ainda que o nosso modo de vida pareça voltar ao ponto anterior ao pequeno ensaio de apocalipse que vivemos recentemente, algo parece estar deslocado. O mundo não parece estar voltando ao “normal”. Voltamos a produzir em ritmo frenético, mas não parece que retornamos a nenhum lugar anterior ao dos tempos da pandemia. Depois de um evento dessa magnitude, não existe retorno possível. Não somos mais os mesmos, e o que aconteceu deixou cicatrizes em todos nós.

Muitos perderam amigos, conhecidos, familiares, os que tiveram sorte, porque quase 600.000 perderam muito mais, a vida mesmo. Não conheço quem não tenha experimentado a morte de perto, seja através do contato com o vírus, seja porque ele levou pra sempre algum afeto. Eu perdi alguns amigos e alguns negócios nos últimos 18 meses (precisamente, três). Estou em luto em múltiplos níveis. Os que não estão de luto, estão com a saúde mental abalada, seja porque trabalharam redobrado (os afortunados, estes ao menos tinham o trabalho para servir de escapismo diante do cenário de terror), seja porque carburaram seus neurônios em videochamadas intermináveis, ou porque, além de terem que se virar no digital, foram forçados a se transformarem em produtores de conteúdo, este trabalho tão porcamente remunerado (te odeio e te amo, Zuck).

De qualquer forma, muitos entre nós estão carentes, irritadiços, exaustos ou perderam seu condicionamento da produtividade. Não somos mais os mesmos, e qualquer empreendedor precisa entender como essa tragédia afetará a cultura — e seu nicho — ora em diante. A pandemia provocou transformações profundas em cada um de nós, transformações que ainda mal conseguimos entender dado que não existirá um fim decretado para ela: provavelmente teremos que conviver com esse maldito vírus entre nós por anos e anos, como uma espécie agravada de gripe, a uma mutação de nos jogar de novo no cárcere. Lembro que no começo da pandemia falávamos de retorno a um “novo normal”, que seria o antigo “normal”, só que no além da pandemia, com máscara e gel. Acontece que se o empreendedor não observar de maneira atenta os impactos de tamanha fratura em nossa cultura, e consequentemente em seu nicho, correrá o risco de produzir produtos e serviços que já nascem obsoletos. Se antes da pandemia dizíamos que de perto ninguém era normal, hoje definitivamente dá pra dizer que de longe já dá pra sacar que estamos irremediavelmente anormais.

--

--

Facundo Guerra

Engenheiro de alimentos, jornalista internacional e político, mestre e doutor em Ciência Política pela PUC-SP, diagnosticado empreendedor aos 30 anos de idade.