O empreendedor arlequim

Facundo Guerra
2 min readNov 16, 2021

--

Eu, filho de uma família de classe média baixa (o que no Brasil já conta como uma tremenda vantagem), sempre ouvi do meu pai: “filho, existem dois caminhos para a mobilidade social neste país: estudo ou crime. Não me suje o nome da família, que ele só está emprestado pra ti. Estude.”

E estudei, pelos orixás. Sempre me vi como um CDF (cu de ferro, aqueles de bandas na bunda calejadas por conta das longas horas com elas apoiadas nos duros assentos de madeira escolares), gostava de estudar. Logo cedo na vida descobri que estudar era um tipo de superpoder adquirido: poderia não ter dinheiro, mas teria argumentos para quase tudo. Então lá fui eu fazer engenharia para agradar meu pai, logo depois jornalismo para agradar meus amigos, então mestrado e doutorado em ciência política, para me reconciliar com o passado familiar combativo, e entre todas essas horas com o rabo parafusado numa cadeira lendo, ainda encontrei tempo de complementar meus estudos com história da arte, história do cinema, da música, enfim, se tem algo que posso dizer que fiz bem na vida foi estudar, não tanto para converter essas horas lidas em um diploma, mas para afiar minhas armas na arte da esgrima das línguas: a política (e a argumentação) é uma forma de guerra continuada por outros meios. Se estava disposto a vencer na vida, seria porque meu arsenal ia da engenharia à filosofia política, passando pelas artes e pelo cinema. Eu estava armado de livros até os dentes.

Grande merda. Hoje em dia, meu valor está associado ao fato de ter um número ao lado de meu nome nas redes sociais. Quanto maior o número, mais valioso sou, mais mimos eu recebo, mais a minha vida se torna acolchoada. Olhamos para estes números como a exata medida do valor de um humano. Não importa se cometi crimes (os números aumentarão), se minhas opiniões são fascistas (os números aumentarão MUITO), o que importa é o número. O número, ele pode ser comprado (10.000 seguidores por 250 reais), porque ninguém tem tempo em rede social pra ver quem é real ou não é. Aliás, “real” é um conceito absolutamente relativo em termos de redes sociais.

Chegamos no momento em que o empreendedor não precisa mais ter feito algo: basta aparentar. Então você pode ser o ninja hacker de cripto e irá vender os 12 passos para o midset milionário, chegar de corsa no local da convenção, lançar curso com 7 dígitos, e tudo isso só existe dentro do instagram, porque ele é tudo que importa. O Instagram e o numerozinho ao lado do seu nome, eles são a realidade. Sua patética vida do outro lado da tela não importa, bem como meu título de doutor. Quem se importa com doutores no dia de hoje, estes seres anacrônicos sem uma conta no tik tok?

Licença que eu tenho que gravar mais um reels, se não meu engajamento cairá, segundo o ebook que baixei ontem que me ensinou a hackear o algoritmo do instagram.

--

--

Facundo Guerra
Facundo Guerra

Written by Facundo Guerra

Engenheiro de alimentos, jornalista internacional e político, mestre e doutor em Ciência Política pela PUC-SP, diagnosticado empreendedor aos 30 anos de idade.

No responses yet